Do amor

Postado em: agosto 14, 2010 por Marcio Carvalho em

Quando o mundo ainda era jovem e somente uma tribo caminhava sobre a terra, os antigos deuses entregaram um presente aos homens. Uma jóia cor de sangue, um rubi de sonhos. E ao sonhar, os homens estariam nos braços dos deuses, unidos a toda a criação, ligados a todas as outras criaturas do mundo, protegidos, cuidados. E ninguém se sentiria sozinho. Essa jóia chamava-se Amor.


E foi dito aos homens que guardassem a pedra, pois enquanto elas existissem, o coração do homem nunca se afastaria da deidade. O chefe da tribo, Adh-an, tinha dois filhos, Kaihn e Avehl. Os irmãos gêmeos eram os mais rápidos e mais fortes de toda a tribo e a eles Adh-an entregou a tarefa de vigiar o Amor.

E os irmãos revezavam-se na tarefa. Kaihn ficava junto à jóia durante os dias e Avehl durante as noites. E no raiar do dia e no cair da noite os dois revezavam-se. E todos os homens ao dormir, sonhavam com o Amor dos deuses.

Kaihn admirava o brilho da pedra sob a luz do sol. O toque suave e quente dos raios refletidos em sua pele eram como os de uma amante e enchia-lhe o coração e acolhia sua alma. Mas o dia sempre terminava, e ele havia de voltar para sua casa sozinho. E era para ele mais difícil afastar-se da jóia. Mas ao nascer da lua, Avehl sempre estava lá.

E o tempo passou. Os dias pareciam durar cada vez menos para Kaihn. Avehl parecia vir cada vez mais cedo. E as noites pareciam não acabar nunca. Kaihn já não sonhava o mesmo sonho que os outros. Seu sono era governado por um pesadelo onde ele estava sozinho no mundo. Não haviam mais deuses e não havia mais tribo, tampouco ele conseguia sentir o calor do Amor em seu peito. Tudo era dor, desespero e solidão.

Kaihn pedia aos deuses para sonhar o sonho do Amor novamente, mas recebia só o silêncio da noite. Ele não havia feito nada de errado, por que estava sendo castigado? Foi numa noite sem lua no céu que ele, sem conseguir mais dormir, percebeu o que acontecera. Era Avehl! Ele passava todas as noites protegendo o rubi. Ele era o único que poderia tocá-la, que poderia usá-la. De alguma maneira ele descobriu como controlar o Amor e ao fazer isso, privara Kaihn do sonho.

Avehl. Tinha quer ser ele.

E no silêncio da noite, enquanto os outros dormiam, Avehl tramava.

No dia seguinte, o sol levantou-se como sempre fazia. E as mulheres da tribo saíram para os campos, como sempre faziam. E os homens saíram para caçar, como sempre faziam. E Adh-an mandou chamar seus filhos, pois era outono e em breve seria preciso prepararem-se para o inverno. Mas Kaihn não estava em seus aposentos. O rei mandou então os homens buscarem Avehl, na sala da jóia. Talvez Kaihn estivesse lá com o irmão.

Os homens voltaram com o horror nos olhos. Avehl estava morto. Jogado no salão da jóia. Seu sangue tingia o salão de carmim. A pedra não estava em seu lugar. E Kaihn não podia ser encontrado.

Adh-an não entendeu o que lhe contaram, em princípio. Nenhum homem de sua tribo havia morrido no salão da jóia, antes. Nenhum homem havia sido assassinado. E a pedra dos sonhos estava perdida, junto com Kaihn. E Avehl havia sido morto.

O rei mandou que toda a tribo procurasse pela pedra e por seu filho.

Os homens foram em todas as direções. Mais tarde, sem ter sucesso, com a chegada da noite todos foram dormir. E enquanto dormiam, os homens tiveram sonhos com a morte, o esquecimento, o medo e a perda.

Dias se passaram e a cada noite, os sonhos se tornavam mais e mais selvagens. Agora, os homens pareciam cansados, pois tinham medo de dormir e acordarem loucos.

Uma manhã, no início do inverno, Kaihn foi encontrado. Os homens do rei haviam tido dificuldade em reconhecê-lo, pois Kaihn parecia mais um animal, vestido com restos de peles de feras mortas. Ele parecia ter perdido a sanidade e agarrava-se ao Amor com tal ferocidade que nenhum homem parecia conseguir tiro-la dele.

Adh-an foi ao encontro do filho. Entendendo finalmente que o assassino de Avehl havia sido o próprio irmão. Mas ao ver a figura do pai a sua frente, Kaihn gritou como um animal enlouquecido, e pulou no pescoço de Adh-an, matando-o com as próprias mãos. Ele então atacou o homem que segurava a pedra, arrancando-a de suas mãos.

Fugindo novamente, Kaihn foi em direção a um penhasco. Os homens da tribo o cercaram, mas ninguém se aproximava, com medo de que ele jogasse o rubi nas pedras mais abaixo.

E Kaihn chorou e lembrou-se de seu pai e do irmão. E lembrou-se dos sonhos com os deuses e com todos os animais e todos os homens juntos. E desejando sonhar novamente com o Amor, ele fechou os olhos, deixando-se cair.

Seu corpo encontrou as pedras no fundo do penhasco e Kaihn morreu. A jóia dos deuses partira-se em milhares de pedaços.

Os homens recolheram os pedaços, mas como a própria pedra, seus corações pareciam ter sido destruídos naquele dia.

Os homens voltaram para a tribo, onde fizeram um conselho para decidir o que seria feito, então. Os anciãos disseram que os deuses haviam sido desafiados com os atos de Kaihn e que a terra onde moravam havia sido amaldiçoada. Os mais fortes da tribo dividiram os pedaços do Amor entre si, nomeando-se lideres de seus clãs e esperançosos de continuarem ainda sonhando com a unidade com os deuses.

Muito tempo se passou, desde aquela época. A tribo disperso-se pelo mundo, fugindo do paraíso agora amaldiçoado. Os clãs se dividiram em tribos diferentes, que em pouco tempo eram tão numerosas quanto os cacos do rubi.

E desde então, os homens não sonham mais com os deuses. Cada um sonha com um pedaço da pedra, um pedaço da totalidade, incompleto e imperfeito. E desde então os homens sonham em encontrar o Amor completo novamente.