Do que se vai mas nunca é perdido

Postado em: setembro 06, 2010 por Marcio Carvalho em

Ela abre o álbum de forma displicente. Os outros parentes estão vendo as fotos da família e sua mãe insistiu para que ela também participasse do ritual das reuniões de família. Apesar de gostar de participar do evento e até mesmo se divertir com vários deles, a menina não queria muito ver as fotos. Tantas coisas para pensar, não queria perder tempo olhando para as imagens congeladas das mesmas pessoas que estavam a sua volta.

Mas por conta da insistência, acabou participando do ritual de passagem dos álbuns de mão em mão. Olhava rapidamente as fotos, concordando com os comentários eventuais de uma tia ou uma das crianças da família. Mas nenhuma das imagens captava sua atenção por mais que alguns segundos.

Até que, folheando um dos álbuns maiores, uma das fotos soltou-se e caiu aos seus pés. A garota abaixou-se para pegar e viu que era uma foto da época em que seu pai ainda estava vivo.

Estavam todos ali na foto. Ela, sua mãe, os irmãos e o pai, usando sua camiseta preferida.

Era muito pequena, quando o pai faleceu, mas escutava várias histórias que sua mãe lhe contara. Ele parecia ser um homem muito amável (afinal, tivera vários filhos). Lembrava muito pouco dele. Na foto ele segurava seu irmão mais novo nos braços e sorria meio sem jeito, com o cachimbo no canto da boca. E era justamente aquele cachimbo que lhe criara a memória mais antiga da qual ela se recordava: o pai chegava do trabalho, pegava o jornal e sentava-se na sala para ler as notícias do dia e fumar seu cachimbo. Algumas vezes a mãe dela se compadecia e trazia-lhe um café ou outra bebida, mas ele não se importava com isso.

E ele não saia da poltrona até ter terminado tudo. Ela lembrou que algumas vezes se sentava no colo do pra tentar também entender o que estava escrito. O pai dela a olhava com um sorriso no rosto, beijava-lhe a testa suavemente e a colocava no chão.

Até que uma noite o pai não voltou para casa. Sua mãe chorou muito naquele dia e uma das tias veio explicar para as crianças que seu pai não estava mais no meio da gente. Naquela noite a menina dormiu na poltrona, envolta num cobertor xadrez, sentindo o cheiro do cachimbo do pai e naquela noite sonhou com viagens de carro e saudades.

Todas as lembranças voltaram a ela enquanto ela olhava a foto. Um sentimento de aperto tomou seu peito e no meio das risadas da sala, ela sentiu vontade de chorar. Escondida da mãe, guardou a foto no bolso.

Naquela noite, ela pegou a foto que havia escondido e ficou olhando-a por vários minutos, antes de dormir. Tantos sentimentos, tantas coisas que gostaria de ter falado para seu pai. Gostaria de ter conhecido-o melhor. O que será que ele gostava de comer? Como foi sua infância? O que sentiu quando os filhos nasceram?

Ela sentiu uma certa melancolia por não ter conhecido melhor o pai. Nunca saberia qual a cor preferida dele, ou o que ele sentiu quando os filhos nasceram.

Mas a melancolia veio acompanhada de um sentimento doce, porque ela sabia que seu pai sempre a acompanharia.

Naquela noite a garota dormiu logo. Embaixo de sua  cama, numa caixa de sapatos, uma fotografia antiga divide espaço com diários antigos, cartas de namorados e a um certo cachimbo.